Em 1997 quando Lisboa ainda respirava um certo ar de cosmopolitismo, de capital Europeia, eu criei o Festival de Cinema Gay e Lésbico.
Hoje infelizmente o terreno está fértil para outro tipo de sementes, hoje florescem os movimentos de extrema-direita, manifestações anti-gay, uma má educação generalizada nas ruas, uma cidade feia e suja e o desgaste da esperança de criar um mundo livre e melhor.
Abaixo o texto que escrevi para a apresentação deste primeiro Festival.
“...Não há segredo na vida! A finalidade da vida, admitindo que exista, consiste simplesmente na busca contínua das tentações.”
Oscar Wilde
‘Só os sentidos podem curar a alma, assim como só a alma pode curar os sentidos.”
Oscar Wilde
Em primeiro lugar quero agradecer a todos aqueles que, de uma maneira directa ou indirecta colaboraram para a realização deste festival. As gentilezas, a atenção, a amabilidade, as coisas práticas ou simplesmente o tempo passado em conjunto a idealizar um sonho comum. Um sonho que se torna realidade na forma de 52 sessões distribuídas pelas salas da Videoteca de Lisboa, Cinemateca Portuguesa e Padrão dos Descobrimentos, onde serão apresentados 66 títulos com uma grande variedade de temas, abrangendo todo o universo homossexual (drama, romance, sexo, gay Iifestyle, comédia, homofobia, musicais, animação, Sado-masoquismo e variantes, SIDA, étnicos, documentários, pride, novos, clássicos, etc.).
Esperamos assim suprir todos os gostos e expectativas.Confesso que foi com grande apreensão, que aceitei o desafio de produzir e dirigir este festival. Para além das dificuldades inerentes ao processo, era para mim uma experiência nova. Tomada a decisão, deixei-me seduzir, e, a cada descoberta, a cada acrescento, já podia vislumbrar o todo. A quantidade de imagens e situações, e sobretudo o facto de este evento se revestir de grande importância cultural e social, e de Portugal ser, entre a maior parte dos países da Europa, um dos últimos a apresentar publicamente uma mostra deste género como prova pública de aceitação das diferenças, transformou este projecto num objecto de paixão, e como todas as paixões, foi vivida com toda a intensidade.
Não me podia esquecer que tanto o cinema quanto a homossexualidade são invenções do século XIX e aí iniciei a minha pesquisa. Sem subestimar o peso da palavra “homossexualidade”, que traz em si mesmo uma multiplicidade de mensagens, e que por muito tempo esteve circunscrita a um mundo de sombras, encontra no cinema o seu grande cúmplice. Ainda hoje retenho a imagem dos espectadores aterrorizados com a chegada do comboio na Gare de la Ciotat, de Lumiére. De forma análoga os espectadores serão ameaçados pela descoberta desta nova “doença”.
O jogo começa e em 1895, com “The GayBrothers”, um ensaio de sonorização que nos mostra a imagem de dois homens a dançar uma valsa. Nos anos seguintes o tema torna-se quase corriqueiro, sendo tratado mesmo com grande poesia, apesar de, muitas vezes, de forma sublimada.
A partir dos anos 50 e 60, novas facetas da moral vigente fecham as portas a uma série de temas. A homossexualidade é tratada como um mal a ser destruído. Porém, mais uma vez por caminhos sinuosos e metafóricos, uma grande quantidade de filmes é produzida, muitos dos quais com forte tendência homófoba que, no entanto, seja pela beleza em si, seja pelo ultrapassar fronteiras e intenções d’Arte se transformam em grandes clássicos onde a intolerância é substituída pela humanidade das personagens. Mas, mesmo assim, essas personagens têm na sua totalidade um final trágico e pleno de culpa. Poderemos desfrutar alguns exemplos como: The Rope, Suddeniy Last Summer, Les Diaboliques, The Chiidren’s Hour, The Damned, Saio o les 120 Gioenate di Sodoma, entre outros.
Em 1970, The Boys in the Band, um exemplo antológico e fundamental, mostra pela primeira vez uma nova visão do homossexual, agora mais global, mais social, e independentemente do sofrimento atávico, um grande passo foi dado.
Os anos 80 são marcados como os anos da SIDA e da afirmação, grandes biografias como The Naked Civil Servant, Mishima ou ensaios de fotografia como Sebastiane.
A reafirmação e o orgulho fundamentam-se nos anos 90, e aqui está a nossa grande aposta, pois vale a pena salientar que alguns dos filmes seleccionados serão exibidos pela primeira vez em Portugal.São uma grande quantidade de documentários, desde os que ensinam às pessoas como se hão de defender deste mal, como Red Light, Green Light, aos politizados como Wigstock, Paris is Burning, Queer Son, Eurogayvision, Spikes and Heels, aos antológicos como The CeIluloid Closet e A Bit of Scarlet, e as fantásticas vidas e obras de figuras como Tom of Finland, Gertrud Stein, Tiny Davis e Ruby Lucas.
Apresentamos ainda preciosidades como Un Chantd’Amourde Jean Genet, Couch de Andy Warhol e Scorpio Rising de Kenneth Anger.
Finalmente, um espaço dedicado ao cinema português, com as obras de realizadores como Joaquim Pinto, Nuno Leonel, Joaquim Leitão, Margarida Cardoso e João Pedro Rodrigues.
Este festival não visa atingir apenas a população homossexual, mas toda a gente. O nosso grande objectivo é abrir um caminho onde a cultura gay e lésbica, nos seus mais altos padrões, possam com dignidade e beleza atenuar as diferenças, os preconceitos, com a humanidade necessária e todo o amor que nos cabe dedicar. Espero, sobretudo, que o l° Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa, nos propicie duas semanas de reflexão, análise, orgulho, muito prazer e divertimento.
Celso Junior
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